sexta-feira, 13 de maio de 2011

Jornalismo Independente

Bastidores de uma CPI que nunca existiu

Quando a Câmara Municipal de Sorocaba resolveu acatar a decisão do juiz titular da Vara da Fazenda Pública, Marcos Soares Machado, e instaurar - a contragosto - a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o pagamento do Executivo à quitação de empréstimo consignado em folha de cerca de 1.200 servidores junto ao Banco Único S.A. (antigo BNL do Brasil), sabia que apenas iria "cumprir a tabela". "Isso não daria em nada mesmo", disse um vereador ao ÚNICO, no final de abril. Menos ainda após a decisão do promotor Orlando Bastos Filho, em arquivar o inquérito aberto pelo Ministério Público com a mesma finalidade.

Em 27 de outubro de 2006, data da assinatura da Transferência Eletrônica Disponível (TED) dos R$ 851.021,80 pelo prefeito Vitor Lippi (PSDB) ao Banco Único S.A., a instituição financeira pertencia ao Unibanco. Atualmente, por coincidência, está nas mãos do Itaú - o mesmo que administra a folha de pagamento da Prefeitura. Outra coincidência: o Itaú permaneceu sendo um dos bancos da cidade a não cumprir a Lei 8.146/07, de autoria do presidente da CPI, vereador José Francisco Martinez (PSDB), que obrigava garantir, antes de ser derrubada pela Justiça, privacidade aos clientes no momento de serem atendidos nos caixas das agências do município.

No entendimento do MP, a "ilegalidade do ato", ou seja, a quitação da dívida pela Prefeitura, que ocorreu de forma "equivocada", não caracteriza ato de improbidade administrativa e, consequentemente, não atinge o Chefe do Executivo. Em miúdos, o promotor Orlando Bastos Filho preferiu não processar Lippi, pois, tal decisão judicial levaria, no mínimo, 10 anos para ser publicada. Acontece que o prefeito de uma cidade tem foro privilegiado, e só pode responder no Tribunal de Justiça (TJ).

O Executivo pagou a dívida porque quis. Um documento assinado pelo então secretário de Administração Municipal, Carlos Roberto Levy Pinto, em 5 de abril de 1999, - época do rompimento do acordo entre o BNL do Brasil e a Prefeitura de Sorocaba -, "lavava as mãos" do Paço à quitação de saldos devedores. Se baseava nos termos da cláusula 4.4 do convênio. Mesmo assim, a administração Lippi optou por quitar a dívida, em 27 de outubro de 2006, descontando do holerite dos servidores que fizeram os empréstimos uma taxa de 0,25% de juros aos mês. Os bancos cobravam, à época, taxas que variavam de 1,5% a 1,8% ao mês.

O mesmo convênio chegou a ser firmado entre a Câmara Municipal de Sorocaba e o BNL do Brasil. Porém, ao cancelar o contrato, em setembro de 2005, segundo o departamento jurídico do Legislativo, considerou-se inviável o acordo que o Banco Único S.A. se propôs a fazer (nos mesmos moldes do realizado com a Prefeitura). Dessa forma, a Câmara resolveu romper, unilateralmente, com a instituição financeira. Diferentemente da Prefeitura, o Legislativo não arcou com o ônus da dívida contraída pelos seus funcionários.

"Poderia ocorrer uma desgraça no Paço"

O único órgão de imprensa a noticiar o fato envolvendo a Prefeitura e o acerto financeiro com o Banco Único S.A. foi o Cruzeiro do Sul, por meio deste mesmo repórter, com exclusividade, em 24 de maio de 2007, sob o título na página A6: 'Prefeitura paga R$ 851 mil em dívidas de servidores'. Os bastidores da notícia, nunca antes revelado, estarão expostos abaixo, para a opinião do leitores.

Ao saber da quitação da dívida pela Prefeitura junto ao Banco Único S.A., e de uma representação protocolada no Ministério Público pelo comerciante Marco Antônio Portella Defácio (responsável pela mediação do acordo do então BNL do Brasil com o Paço para o crédito consignado), o então repórter do Cruzeiro do Sul foi atrás dos fatos. Mesmo pressionado, não desistiu da publicação, que ganhou a manchete do veículo e repercutiu em toda a cidade.

Após deixar a sala em que funciona o protocolo do MP, no subsolo do Fórum de Sorocaba, e entrevistar Portella Defácio, Gustavo Ferrari caminhou na direção do Paço. Chegou ao quarto andar do Palácio dos Tropeiro, local da Secretaria de Comunicação. Conversou com a então diretora de comunicação, Nerli Peres, e com o assessor de imprensa Renato Monteiro. Explicou a situação aos dois e solicitou, com urgência, uma entrevista com o prefeito Vitor Lippi (PSDB). Era por volta das 16h45 do dia 23 de maio de 2007.

Renato Monteiro e Nerli Peres deixaram a sala do quarto andar e pediram para o repórter esperar. Por volta das 18h20, Monteiro solicitou que Gustavo Ferrari subisse ao sexto andar, local onde funciona o Gabinete do Chefe do Executivo. Foi quando o então secretário de Governo e Planejamento (extinta SGP), Maurício Biazotto Corte, o recebeu em sua sala. Em seguida, juntaram-se ao 'líder do governo' o então secretário de Comunicação (Secom), Carlos Alberto Maria, o então secretário de Recursos Humanos (Serh), Rodrigo Moreno, o então secretário de Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente (extinta Sehaum), José Dias Batista Ferrari, e, posteriormente, o então vice-prefeito, Geraldo de Moura Caiuby. Somados a eles estavam Renato Monteiro e Nerli Peres. Eram sete servidores municipais e um repórter na mesma sala.

Moreno e Biazotto argumentaram que o procedimento feito por Lippi era "legal". Diante da insistência do repórter em questionar se a Prefeitura de Sorocaba tornara-se banco, que emprestava e quitava dívidas particulares, Biazotto foi incisivo e disparou: "Poderia ocorrer uma desgraça no Paço". Intrigado com a resposta, o repórter prosseguiu: "Como assim"? Biazotto complementou: "Havia funcionário desesperado, que não sabia o que fazer para pagar a dívida. Inclusive teve gente que ameaçou a se jogar do prédio da Prefeitura". O repórter fez-se de desentendido e continuou a questionar: "Então, poderia haver suicídio aqui. É isso"? "Exatamente isso", acrescentou Biazotto. Moreno utilizou pareceres jurídicos para explicar a operação. Para Cauiby, a publicação da matéria no Cruzeiro do Sul era desnecessária.

Jornalista experiente, Renato Monteiro tentou argumentar ao repórter informações que ele já havia colhido com o denunciante do fato, o comerciante Portella Defácio. Tentou 'elucidar' o procedimento do prefeito, quando Carlos Alberto Maria taxou: "Tinha que ser feito. Não havia outra solução". Todos tentaram eximir Lippi de qualquer culpa, e solicitaram ao repórter que deixasse isso claro no texto que iria publicar, caso fosse escrito.

Na redação do Cruzeiro do Sul, o editor-chefe na ocasião dos fatos pediu ao repórter que segurasse a matéria. Porém, com argumentos e documentos em mãos, Ferrari conseguiu o consenso: a manchete de 24 de maio de 2007 estava desenhada.

'Tucanos' polarizam Comissão


Assim que soube do arquivamento do inquérito que investigava o pagamento da quitação do empréstimo consignado em folha pelo Executivo de Sorocaba junto ao Banco Único S.A., o presidente da Câmara Municipal, Mário Marte Marinho Júnior (PPS), foi obrigado a interromper a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), aprovada uma semana antes por sete votos (incluindo o próprio). Tonão Silvano (PMDB) voltou atrás e desistiu da assinatura. Com 6 votos, a instauração ficou prejudicada. Quando a Justiça, acionada por Francisco França (PT) e José Antônio Caldini Crespo (DEM), obrigou que a CPI prosseguisse, José Francisco Martinez (PSDB), líder de Lippi no Legislativo, foi nomeado pela comissão como presidente, e Hélio Aparecido Godoy (ex-PSDB, atual PTB), tornou-se o relator. Assim foi comandada, por 15 dias, a tal 'CPI Tucana'.

Com apenas quatro oitivas, a Comissão determinou o arquivamento da apuração. A principal alegação foi a de que o Ministério Público - órgão responsável pela investigação - havia arquivado o que os vereadores iriam descobrir. Dessa forma, durante a sessão ordinária do dia 26 de abril de 2011, os parlamentares aprovaram, com quatro votos contrários (França, Izídio, Crespo e Cláudio do Sorocaba 1), o arquivamento do relatório oficial da CPI do Empréstimo. Diferentemente do discurso inicial de que todos os responsáveis seriam ouvidos, a comissão ouviu os dois denunciantes (Marco Antonio Portella Defácio e Eilovir José Brito), a ex-presidente do Sindicato dos Servidores Municipais (Maria Winnifred) e o jornalista do Bom Dia, Pedro Guerra.

De autoria de Godoy e subscrito por Martinez e quatro membros (Rozendo de Oliveira-PV, Benedito Oleriano-PMN, Irineu Toledo-PRB e Anselmo Neto-PP), o relatório não apontou improbidade administrativa, ilicitude penal ou irregularidade por parte do prefeito Vitor Lippi (PSDB), mas relatou vantagem indevida do banco conveniado que teria agido de má-fé, lesando os funcionários públicos. Segundo os argumentos apresentados, havia previsão legal no orçamento (reserva de contingência) para o pagamento, posteriormente ressarcido pelos funcionários.

O relatório também contém recomendações para que a assinatura de convênios semelhantes seja evitada pelo Poder Público; que a administração estude ação contra o banco conveniado na ocasião e executores do contrato local quanto ao ressarcimento dos danos aos servidores, e para que a Câmara regulamente no Regimento Interno o funcionamento das CPIs, com fixação de procedimentos para as próximas a serem instaladas. Os vereadores Claudio do Sorocaba 1, Francisco França e José Crespo, que não assinaram o documento, apresentaram relatório em separado divergente ao do relator da CPI.

Os parlamentares alegaram que “manobras praticadas pela base adesiva do Governo, abortou o final dos trabalhos”. O documento elenca uma série de questionamentos que teriam ficado sem respostas pela falta de estudo e novas oitivas, além de apontar irregularidades como a falta de licitação pra escolha da instituição financeira, escolhida arbitrariamente; abuso nos financiamentos, desrespeitado o dispositivo que limitava os descontos em folha a 30% do salário, e não autorização da Câmara para quitar o débito. Os dois relatórios serão encaminhados a demais autoridades como a Prefeitura e o Ministério Público para ciência.

Agora será na Justiça

Os vereadores da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT), Francisco França, também vice-presidente da Câmara Municipal, Izídio de Brito Correia (líder) e o democrata José Antônio Caldini Crespo protocolaram, no Fórum de Sorocaba, uma ação popular contra o prefeito Vitor Lippi (PSDB), o secretário municipal de Finanças, Fernando Furukawa, o ex-secretário de Recursos Humanos do Executivo, José Vicente Dias Mascarenhas e ainda contra o Banco Itaú, sucessor do Banco BNL do Brasil.

A ação está baseada na ilegalidade cometida pelo Chefe do Executivo em fazer com que a municipalidade arcasse com o pagamento de dívidas particulares de servidores com a antiga instituição financeira.

Arquivo morto espera...

A lição que fica da atitude da Prefeitura de Sorocaba ao quitar a dívida dos servidores públicos municipais é só uma: a do bom samaritano. Vitor Lippi (PSDB), ao assumir o compromisso que não fora dele, mostrou que no cofre do Paço há sobras de dinheiro capazes de honrar até contas particulares. E numa espécie de banco - que não é nem privado nem estatal - conseguiu um desconto na folha de pagamento dos funcionários de 0, 25% ao mês, algo inacreditável para um país como o Brasil.

A oposição na Câmara Municipal, que resolveu se manifestar tardiamente (a primeira denúncia do caso foi em 24 de maio de 2007), perdeu mais uma para o Executivo. Aliás, não ganha uma. É como se dividisse a bola com um gigante, que possui as mãos e as pernas maiores que a maioria. A "dupla do contra", José Antônio Caldini Crespo (DEM) e Francisco França (PT), ingressou novamente à Justiça, agora com uma ação popular. Dessa forma, tentam reverter o fracasso da Comissão Parlamentar de Inquérito. Outro arquivamento, que se soma às CPIs dos Transportes e do Serviço Funerário. Mas não seria diferente, já que o Executivo mantém sob a sua aliança 16 dos 20 parlamentares. Crespo e França estão sozinhos. E vão perder, sempre!

Como Davi, Lippi reina. Tem a Câmara nas mãos, uma parte da imprensa sorocabana e o sorriso de bom samaritano. As lambanças ocorridas durante seus seis anos e meio à frente do Executivo local caíram no esquecimento do povo. Menos no esquecimento do ÚNICO. Vamos recordar: carros Corolla para secretários; isenção de imposto para firma de secretário; escritório na China que nunca existiu; Operação Pandora e dois secretários presos; secretário preso em motel com adolescentes; secretário denunciado por descaso em hospitais psiquiátricos; secretário processado por favorecimento no pagamento de precatórios... Quantos exemplos temos para citar.

Ninguém entra na carreira pública por obrigação. Logo, não faz favor à população. Dessa forma, não pode se queixar de ser cobrado e criticado por órgãos independentes, lúcidos, compromissados com a verdade dos fatos, com a decência moral e a licitude ética. Assim, o Único expõe a bandeira do idealismo, para uma sociedade democrática que se preocupa com o crescimento social e o desenvolvimento pela transformação.

Um equívoco não pode ser corrigido com um erro. E no entendimento do Ministério Público, além do erro houve uma ação ilegal por parte do prefeito de Sorocaba ao quitar a dívida. Mas o promotor Orlando Bastos Filho optou por não processar o Chefe do Executivo porque sabe que, provavelmente, estaria aposentado quando a sentença - se é que haveria uma - sairia publicada. Só não podemos nos esquecer de que um arquivamento não quer dizer nada. O que é arquivado hoje pode ser desarquivado amanhã. Afinal de contas, papel aceita tudo.

by Gustavo Ferrari