segunda-feira, 2 de junho de 2008

Sobras da modernidade

Erick Pinheiro/Av. Afonso Vergueiro
Quando nosso olhar bate naquele pequeno estendendo o braço, ofertando a balinha ou salgado é difícil virar nosso rosto - como normalmente fazemos diante dos problemas que 'o poder público devia cuidar'. Fica difícil para qualquer pessoa, mas sobretudo para quem é pai ou mãe. A remissão aos filhos é inevitável. Como um imã nosso olhar estará na direção dos braços suplicantes, vendedores. E ao mesmo tempo frágeis.

Faz algum tempo, em São Paulo, estava com um amigo jornalista num restaurante no bairro Jardins, quando notei, na janela lateral, duas crianças grudadas na vidraça, acompanhando nosso jantar, saboreando com os olhos as massas e saladas. Ato contínuo, pedimos ao garçom um prato 'pra viagem' que acabou na mão dos pequenos... Mas a imagem dos olhos na vidraça sempre me acompanha: um misto de dor com 'algo precisa ser feito'.

O que tem acontecido nos últimos tempos, em metrópoles cujo coração é o contraste entre a opulência e a miséria, envolve um certo temor quando crianças são avistadas nos faróis. A preocupação com o social dá lugar ao medo de assalto, ao risco de perder a própria vida. Sim...em vez de salgados e doces, na mão frágil de crianças de sete, oito anos poderá estar um pistola automática.

Mas a escalada segue a lógica gradual do descaso geral com a fome, o frio, o desabrigo e o trabalho infantil... para desaguar na violência. Não se pode permitir que o desenvolvimento acelerado, arrojado, forte, ceda à tentação de simplesmente excluir os de sempre. Aqueles para quem ficarão, invariavelmente, as sobras da modernidade.

Não podemos permitir que nosso olhar congele o coração diante de pequeninos que varam a madrugada oferecendo seu pedaço de infância sob o frio. É possível evitar o ciclo vicioso da escalada. Poder público, ongs, igrejas, comunidades - todos devem fazer a sua parte. E ainda há tempo. Ainda.

by Eugênio Araújo, editor-chefe do jornal Cruzeiro do Sul