Aldo V. Silva/Os premiadosA reportagem 'Infância Comprometida' - pauta do repórter-fotográfico Erick Pinheiro - publicada em 1 de junho de 2008, no jornal
Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, venceu o 8º Prêmio Jornalístico ASI/Schaeffler Group de Direitos Humanos, na categoria Jornalismo Impresso, e garantiu a Gustavo Ferrari o troféu 'Vitor Cioffi de Luca'. Maior que o prêmio é saber que as crianças - protagonistas da história - estão sendo assistidas por órgãos competentes e a família, ajudada por um casal ligado à área da saúde. Vitória do jornalismo.
A matériaCampolim, 0h45 do dia 10 de maio - uma sexta-feira. Os termômetros registram 13ºC. Na pista de caminhada, centenas de jovens se divertem ao som que sai dos altos falantes dos veículos. 'Dança do Créu', 'Festa no Apê' e 'Tropa de Elite' são algumas dessas músicas. Garotas, aparentando 14 ou 15 anos, se embebedam com garrafas de vinho tinto barato. Garotos consomem maconha. Na avenida Domingos Júlio, no semáforo em frente a um fast food, uma triste realidade se desenha na fria noite de outono.
O corpo franzino não amedronta F.V. de lutar pela sobrevivência. Com uma mochila nas costas e um boné vermelho, o menor, de 14 anos, acompanha a irmã G.F., de 10, em um longa jornada pela madrugada. As bandejas que carregam contêm salgados feitos pela mãe. Alimentos estes que irão garantir o sustento da própria família, caso consigam vendê-los aos clientes de sempre: jovens baladeiros.
F.V. não estuda. A diarista maringaense, que está desempregada, Sônia Vanzzella, de 35 anos, não conseguiu matriculá-lo na EE Monteiro Lobato. O motivo alegado: falta de vaga. Ele parou os estudos na 7.ª série. Junto de seus oito filhos, a dona de casa reside em um barraco que ela mesma construiu na rua oito, localizada no Jardim Novo Mundo, em Votorantim.
O lar tem cinco metros quadrados. Há fogão, geladeira, armário, mesa, beliche, uma televisão e até aparelho de DVD. "Tudo comprado com o sacrifício dos meus filhos", diz a mulher, divorciada dos três maridos que teve.
Apenas um deles paga pensão de R$ 100. É o único dinheiro fixo que Sônia recebe para manter os oito filhos, contando a recém nascida D.C., de dois meses. "Tem dias que os dois (F.V. e G.F.) voltam para casa com R$ 40, 60. Outras vezes, conseguem apenas R$ 6, 10. Sabem que precisam ajudar a família e se oferecem. Nunca obriguei-os a fazer nada contra a própria vontade", justifica.
Erick Pinheiro/Os menoresDiferente do irmão, G.F. estuda na 4.ª série da EMEF Profª Mercedes Santucci. A escola fica a duas quadras de sua casa. À noite, somente nos finais de semana, a menor segue rumo ao Campolim para vender os salgados. Enquanto F.V. brinca com a freguesia, faz graça, dança e até conta piada para oferecer os alimentos, a menina vai fundo em seu objetivo. "Tá afim de um salgado quentinho nessa noite fria?", pergunta a um motorista que acabara de parar o veículo no semáforo. Sua voz, de uma criança fragilizada, consegue comover. Reduz-se então, pela metade, o peso da bandeja na sexta-feira.
ÔnibusOs menores chegam ao Campolim por volta das 23h, vindos no ônibus circular do Jardim Novo Mundo. A distância de 10 quilômetros parece não incomodar a dupla, que desce em um ponto da avenida Antônio Carlos Comitre, com disposição. O percurso se repete todos os dias, menos no domingo, quando descansam. Voltam para casa por volta da 1h30.
F.V. conta que começou a vender os salgados após passar pelo local durante seguidas noites. "Percebi que a movimentação era boa e que as pessoas poderiam sair das festas com fome. Como precisam parar no semáforo, sempre tem gente que compra", afirma.
Os salgados são feitos com farinha de trigo e recheio de salsicha. Custam R$ 2 cada. "Não é caro e garanto: é gostoso! Ninguém se arrepende", frisa o menor, que já foi assaltado quando retornava para casa. "O marginal apareceu do nada, perto da praça de eventos de Votorantim. Me roubaram o celular e R$ 40 que tinha conseguido através das vendas. Fazer o quê", ressalta.
PiedadeA mãe dos menores, Sônia Vanzzella, lembra que a venda de salgados pela família começou quando morava em Piedade. "Meu filho aprendeu nas ruas de lá; ia de casa em casa e sempre voltava com dinheiro. Não acho isso errado. É uma forma de sobreviver", destaca.
Ela disse que sonha em um dia mudar a vida de todos. "Para isso, busca um emprego. Se eles (F.G e G.F.) não vendessem, todos nós passaríamos fome. Sempre ensinei meus filhos a não pedirem esmolas. É um trabalho digno, mesmo sendo menores de idade", argumenta.
Sônia se recorda da infância ao explicar a atitude dos filhos, que passam à noite no semáforo. Conta que cria os oito sozinha, sem ajuda externa. Acredita dar uma boa educação a eles. "Já cheguei a catar comida em tambor, atrás da Padaria Real, no próprio Campolim, para comer. Sempre fui boa mãe. Como não tenho estudo, acho que faço o melhor. Digo sempre: não é porque vocês não têm pai que serão uns marginais. Nunca meus filhos mexeram com coisas ilegais. Isso não é bom?", finaliza.
EscolaA menor G.F., de 10 anos, estuda na EMEF Profª Mercedes Santucci, no Jardim Novo Mundo. Matriculada na 4.ª série, ela manteve notas boas e freqüência de 90% em todo o primeiro bimestre. De 56 aulas, não compareceu em apenas seis.
A diretora da escola, Rosangela Ramires, ficou 'chocada' ao ver as fotos da menina na noite do dia 10 de maio. Nunca imaginei isso com um dos nossos alunos. "É uma realidade muito distante da que vivemos. Estou sem palavras", disse.
A professora de Educação Básica I, Débora da Silva Corrêa, lembra que G.F. se dedica aos estudos como qualquer aluna regular. "Fazemos de tudo pela educação e, ao mesmo tempo, não alcançamos o objetivo esperado. Dói demais saber que ela passa por esta situação à noite. Fico pensando: como podemos ajudar?", ressalta.
NotasEm todas as disciplinas, G.F. atingiu a média do bimestre. Em Língua Portuguesa, a menor obteve o conceito S (atingiu os objetivos essenciais). Em História, o conceito foi o B (atingiu todos os objetivos). Em Geografia, Ciências e Matemática, os conceitos também foram S. Já em Educação Artística e Educação Física, a média foi B.
Afonso VergueiroA situação vivida pelos menores F.V. e G.F. no Parque Campolim é a mesma enfrentada pelo menor G., de 4 anos. Em plena luz do dia, ele e os dois irmãos, P., de 9, e R., de 14., que residem no Conjunto Habitacional Ana Paula Eleutério (Habiteto), se arriscam entre os veículos que transitam pela avenida Afonso Vergueiro, no Centro, para vender balas de goma.
"Venho com meus irmãos", disse o menor à reportagem do
Cruzeiro do Sul. Com um pacote contendo cinco drops, G. oferece as balas aos motoristas que param no semáforo do cruzamento da avenida com a rua Professor Toledo. Cada unidade custa R$ 1.
Um erroA Secretaria da Cidadania (Secid) informou que desde a criação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), em 2003, não há registros de trabalho infantil na cidade, e ressalta que o trabalho do Centro Especializado de Referência Social (Creas) identifica as crianças que encontram-se em risco de trabalho infantil e realiza um trabalho preventivo.
A Secid lembra que as crianças em risco são encaminhadas para o Centro de Referência e Atendimento aos Maus Tratos na Infância (Crami) e para o Projeto Educarte. Nesses projetos, segundo a secretaria, as crianças fazem atividades que promovem a conscientização de seus direitos e deveres, resgatando os valores de cidadania.
Também são realizadas atividades culturais, esportivas, artísticas e de lazer, incentivando-os a ampliar seus conhecimentos. As principais atividades, de acordo com a Secid, são orientação escolar (reforço, lição de casa), coral, dança e teatro, artesanato, aulas de auto-ajuda, capoeira, história, noções de higiene e saúde, orientações sobre sexo, doenças, maternidade precoce, apoio psicológico e terapia ocupacional.
A secretaria ressalta que o Peti proporciona o atendimento para 100 crianças/adolescentes. Destas, 50 são atendidas pela entidade Crami e outras 50 pelo Projeto Educarte, desenvolvido pela própria Secid. Já a campanha Esmola não dá Futuro é permanente. Acontece todos os dias da semana, por meio do trabalho da ronda, acrescenta a nota encaminhada ao
Cruzeiro.
Que cidade estamos construindo?Erick Pinheiro/Farto NetoO promotor da Infância e Juventude, Antônio Domingues Farto Neto, ao ver as fotos dos menores à noite no semáforo do Campolim, questiona: "Que cidade estamos construindo?". Para ele, um bom trabalho desenvolvido pelo Conselho Tutelar poderia impedir tal situação.
Farto Neto diz que Sorocaba vive um drama. Quanto mais ela cresce, mais os problemas aumentam. "Novos investimentos chegam e, com eles, a pobreza", disse. O promotor lembra que caberia ao Conselho Tutelar zelar pelas crianças do município. "O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) criou juridicamente o papel dos conselho para isso", ressalta.
Para ele, há a necessidade de se criar, na cidade, um trabalho especializado, não emergencial, mas de continuidade. "Essa situação (vivida pelos menores) revela a ponta de um iceberg. Temos que evitar a exclusão social infantil de forma multidisciplinar. É um problema epidêmico. Se ele começar, reverter a situação será mais difícil. É preciso políticas públicas eficazes", afirma.
7 conselheirosSegundo o titular da Infância e Juventude, com os sete funcionários que atuam no Conselho Tutelar de Sorocaba, é "impossível" uma fiscalização adequada. O promotor aponta uma campanha benéfica para a cidade como exemplo, e que foi retirada das ações da Secretaria da Cidadania (Secid) em 2007: o Esmola não dá futuro. "Era uma coisa muito boa para os jovens, que ficavam pedindo dinheiro nos semáforos. Precisa-se trabalhar em cima desse problema, sempre", conclui.
ComentáriosO editor-chefe do
Cruzeiro, Eugênio Araújo, destacou que os prêmios representam o reconhecimento do trabalho jornalístico. "O jornalismo, a questão ética, a defesa das liberdades democráticas formam o ponto principal de todo o trabalho do
Cruzeiro do Sul. Desde o início dessa premiação o jornal tem cumprido a sua grande missão", afirmou.
Para Laor Rodrigues, que na solenidade representou a diretoria da
Fundação Ubaldino do Amaral (
FUA), mantenedora do jornal
Cruzeiro do Sul, os prêmios têm um significado muito grande não apenas para o Cruzeiro do Sul, mas para a imprensa sorocabana. "A
FUA e o jornal
Cruzeiro do Sul sentem-se muito orgulhosos de ter recebido alguns prêmios nessa edição", disse. E enfatizou que a
TV Com (também premiada na solenidade), mesmo com orçamento pequeno, também tem realizado excelentes trabalhos, e obtido o reconhecimento público.
by
Gustavo Ferrari e Cida Vida